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“Quero deixar um recado para o André Caramante: para ele deixar a polícia trabalhar em paz ou os filhos dele vão estudar no tacho do inferno”. A mensagem dada por uma pessoa não identificada do outro lado da linha foi registrada pelos atendentes da Folha de S. Paulo em 28 de agosto de 2012. Um mês antes, a vida do jornalista de Cotidiano começava a dar sinais de que ia passar por grandes reviravoltas. O contraditório exílio do país em pleno regime democrático passava a ser cada vez mais cogitado para a segurança do repórter ameaçado, esposa e filhos.
A publicação de um texto de apoio de quatro parágrafos para uma reportagem sobre mortes provocadas pela polícia na periferia de São Paulo foi o estopim para uma reação em cadeia de novos e velhos desafetos contra Caramante. Seguidores e colegas de um antigo comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), personagem central da nota, que naquele ano iniciava sua carreira política como candidato a vereador, tomaram suas dores após queixas feitas sobre o jornalista nas redes sociais.
“Acho incrível um jornal com a envergadura da Folha de São Paulo manter em seu quadro de funcionários pessoas que defendem abertamente o crime”, dizia a postagem atribuída ao coronel. Em pouco tempo, mais gente se mobilizou e as provocações deixaram o campo da difamação cibernética para assumir o caráter de reais ameaças a Caramante e sua família, infladas por toda a trajetória de trabalho do jornalista e pelos estímulos do político de primeira viagem, cujo nome esta reportagem não pretende expor por segurança.

Iniciado no mundo dos adultos aos 11 anos como camelô no bairro do Brás para ajudar a família a pagar as contas, e office-boy seis anos mais tarde para bancar os estudos na faculdade de jornalismo, Caramante conhecia bem as adversidades da vida. Responsável por grandes denúncias envolvendo grupos de extermínio, aquele não era seu primeiro contato com ameaças e intimidações. “Entre 2006 e o fim de 2013, uma pessoa do jornal sempre estava comigo em meu deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho para casa”. Pelo telefone, o jornalista já ouviu: “cuidado, muita gente morre em assalto por aí”, recado acompanhado por seu endereço completo. Em outra ocasião, se surpreendeu com fotos de sua família tiradas por policiais à paisana. Caramante não aceita ser fotografado ou filmado por razões de integridade física.

Um velho conhecido na rota de André Caramante
Apesar da familiaridade com ameaças e o entendimento de que boa parte delas funciona mais como um jogo de riscos psicológicos do que físicos, Caramante enxergou elementos inéditos nos acontecimentos que passavam a fazer cada vez mais parte de sua vida. Os indícios de que estariam colhendo informações de seus familiares e vigiando percursos diários feitos por ele e parentes fizeram com que o jornalista, em conjunto com a Folha, optasse pelo trabalho temporário à distância. Foram 90 dias fora do país. Mais de duas décadas após o exílio do jornalista Caco Barcellos por conta da publicação do livro-reportagem “Rota 66”, Caramante viveu uma história semelhante, ameaçado exatamente por aqueles que possuem a obrigação de zelar pela segurança da população.

Jornalistas não são mais importantes que autoridades, crianças, trabalhadores ou quaisquer pessoas. No entanto, o uso da violência ou de outros mecanismos que impeçam o livre exercício da profissão tem especificidades que precisam ser levadas em conta. “Sem jornalistas, as pessoas não terão acesso à informação. Se o cidadão não tem acesso à informação, não há democracia. Uma democracia não pode conviver com a agressão ao jornalista.”, explica Eugênio Bucci, jornalista, professor e conselheiro do Instituto Vladimir Herzog. Para ele, tão importante quanto o compromisso do profissional da imprensa com a aproximação da verdade é o exercício de sua liberdade. “A liberdade para o jornalista é um dever, não um direito. A imprensa livre é um direito do cidadão. Mas para que o cidadão tenha a imprensa livre, o jornalista precisa exercer a liberdade”.
O impedimento do trabalho jornalístico representa uma afronta tanto à Constituição brasileira de 1988, quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que preveem a todo cidadão o direito à liberdade de opinião e expressão, além do livre acesso à informação de interesse público. De acordo com organizações especializadas no assunto, o Brasil figura entre os países com situação mais preocupante quanto à segurança de seus jornalistas, tendo registrado ao menos 20 assassinatos por motivos diretamente relacionados ao exercício da profissão nos últimos doze anos, conforme aponta o Comitê de Proteção aos Jornalistas.
Essa conturbada realidade, contudo, não deve ser entendida fora do contexto geral da violência no país, defendem especialistas. Segundo levantamento feito pela ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil ocupa a terceira posição entre os sul-americanos com maior taxa de homicídio (25,2 por mil habitantes), atrás apenas de Venezuela e Colômbia. Em 2012, o país concentrou mais de 10% de todos os homicídios registrados no mundo, com 50.108 casos.
“Elevados índices de homicídio são mais vistos em países de nível médio de desenvolvimento”, explica o sociólogo e ex-coordenador da Secretaria de Segurança Pública, Tulio Kahn. O crescimento desorganizado das economias em processos de urbanização acelerados, o elevado consumo de álcool e a alta disponibilidade de armas de fogo influenciam no cenário, do qual jornalistas também são vítimas. “O comunicador está justamente tentando dar luz a esses problemas. Os conflitos originários das regiões onde esses crimes ocorrem são motivadores também dos crimes contra os comunicadores”, observa Júlia Lima, membro da equipe de proteção e segurança da ONG Artigo 19.
Todavia, Júlia lembra que nem tudo pode ser explicado por tal perspectiva. Também incidem sobre o quadro do cerceamento à atividade jornalística a impunidade, o despreparo de representantes das forças do Estado, a corrupção, entre outros ingredientes. Do lado dos jornalistas, ganham destaque o despreparo para situações de risco, a falta do uso de equipamentos de segurança ou até a crença de que o risco é algo inerente à profissão. A falta de estudos e uma base de dados mais sólida sobre o assunto também dificulta a realização de diagnósticos para o problema.
Riscos espalhados pelo país
Na mesma época em que nascia o livro “Rota 66”, uma das obras que mais influenciariam o jornalismo investigativo no Brasil, o jornalista Gil Campos vivia no Nordeste uma história similar à de Caco Barcellos, conhecido por contar o caso da polícia que mata, em uma investigação sobre a ação da Rota em São Paulo. Em Campina Grande, cidade no interior da Paraíba, Campos se afastou da família e passou a morar em uma quitinete para evitar que parentes convivessem com os riscos gerados por suas denúncias sobre a criação de um esquadrão da morte. “Isso foi de 90 a 95. Houve uma série de crimes com as mesmas características: as vítimas eram executadas com tiro de escopeta na cabeça, que era coberta com saco plástico”.
Depois disso, o jornalista ainda escreveu sobre ataques a profissionais da imprensa no Nordeste, com a matéria “Mata-se jornalista, paga-se bem”, capa da revista Imprensa. Foi quando sua vida definitivamente virou um inferno. Dois atentados em três meses e uma rotina de cigano, revezando entre as casas de amigos e familiares a cada noite por conta das perseguições, fizeram com que o secretário de segurança pública local o orientasse a fazer as malas. O destino acabou sendo a cidade de São Paulo. “Eu me considero um exilado aqui na cidade que me acolheu muito bem. Se eu tivesse ficado na minha cidade, talvez não estivesse vivo há bastante tempo”.
Na capital paulista, Campos dizia ter medo de sua própria sombra. Depois das perseguições sofridas na Paraíba, o jornalista havia jurado para si não atuar mais na área policial, promessa que foi descumprida quando começou a trabalhar na Tribuna de Guarulhos. Foi aí que os problemas de Campina Grande se redesenharam na Grande São Paulo.

O déjà vu de Gil Campos em Guarulhos
Investigando sobre um promotor de justiça acusado de assassinar a esposa e a camuflagem de policiais civis sobre o caso, Campos começou a receber ameaças que, mais tarde, teriam seu autor descoberto: seu próprio fotógrafo. A inesperada história se repetiria com outros personagens em 2007, logo depois da morte do radialista Luiz Carlos Barbon Filho, em Porto Ferreira, interior de São Paulo. Na época, Barbon havia denunciado práticas de exploração sexual de menores por parte de um grupo de vereadores e empresários, e Campos foi investigar quem estava por trás do assassinato. “Eu me senti ameaçado por próprios colegas de imprensa, e o jornal da ABI (Associação Brasileira de Imprensa, veículo para o qual trabalhava) foi o primeiro órgão de comunicação a denunciar policiais envolvidos no assassinato de Barbon”.

O jornalista ensina que há fatores que não podem ser deixados de lado no jornalismo. Para que se façam coberturas honestas, é preciso abdicar a posição de submissão ou de troca de favores com autoridades e levar a público informações de relevância. “O jornalista e a polícia, na minha concepção, são como água e óleo: não dá para se misturar. Na profissão, a gente tem que ter a consciência do que é ser jornalista de polícia ou jornalista da polícia. É preciso escolher”.
As histórias de Caramante e Campos colocam em xeque o senso comum que diz que as ameaças ao exercício do jornalismo só ocorrem em pequenas cidades, localizadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por influência de questões agrárias e brigas pelo poder local; ou que afirma que tais situações só ocorrem nas grandes metrópoles durante manifestações populares. De Campina Grande a São Paulo, jornalistas estão sujeitos a riscos em todo o país, cobrindo os mais variados assuntos e trabalhando para os mais diversos veículos.
Uma luta por direitos
Depois de três meses fora do país com sua família, Caramante retornou ao Brasil e, em reunião com superiores da Folha, concordou em se afastar das coberturas policiais. Após breve passagem pela Agência Folha, o repórter, que um dia quase virou jogador de futebol profissional, foi parar na editoria de Esporte. “Fui transferido por decisão da diretoria da Folha, e não por pedido meu”.
A insatisfação do repórter com a troca forçada e a situação tensa gerada pelos episódios anteriores de ameaças contra ele e sua família se somaram ao argumento de que o jornal precisava cortar gastos. “Não era um salário alto. Era equivalente à função de uma pessoa que estava lá há algum tempo. Eu não era repórter especial”. Foi assim que, em 10 de fevereiro de 2014, Caramante viu um ciclo que durou 14 anos na frente do grupo Folha chegar ao fim.
A jornalista Lúcia Rodrigues se identifica com a história de Caramante. Em março de 2013, ela foi ameaçada pelo mesmo vereador durante entrevista na Câmara Municipal de São Paulo. “Eu aconselho você a tomar cuidado com o que vai publicar, porque a paulada vem depois do mesmo jeito, no mesmo ritmo”, advertiu o ex-comandante. A reportagem mostrava que ele havia contratado dois de seus principais doadores de campanha e um primo para trabalhar em seu gabinete após tomar posse em 2013. As histórias polêmicas e controversas, entretanto, não parecem ter atrapalhado os voos do antigo chefe da Rota no mundo da política. Pelo contrário: um ano depois, ele foi promovido a deputado estadual pelo eleitorado paulista para compor a famosa “bancada da bala”.
Em meio a tantas adversidades, não parece fácil lutar contra as frequentes pressões e vontades daqueles que anseiam pelo silêncio da imprensa. A persistência e a ousadia, porém, têm um sentido valioso nas palavras de Caramante: “se eu tivesse abandonado [a profissão], quem tentou fazer com que eu abandonasse teria conseguido vitória. Esse gostinho, acho que ainda não. Hoje não”.
Atualmente, o repórter reconstrói sua carreira tratando de segurança pública no portal Ponte. Dentre as histórias inspiradoras vividas ao longo da carreira, ele se recorda de Carlinhos, um rapaz com 31 anos e idade mental de cinco, vítima de abusos da PM. “Ele foi parado por policiais militares aqui na Zona Sul de São Paulo, em 2008. Não soube se expressar. Levaram-no pra um lugar e arrancaram-lhe as mãos, cabeça e pés”. O caso levou Caramante a denunciar um grupo de extermínio chamado Highlanders e reafirmou a constatação de que ser jornalista é, antes de qualquer coisa, ser um cidadão a serviço da sociedade.

André Caramante e a história de Carlinhos
André Caramante e a história de Carlinhos